*Por Patricia Punder
Vivemos em um único planeta. Essa constatação deveria ser suficiente para entendermos que os problemas ambientais não reconhecem fronteiras. O ar poluído que sai de uma indústria em um país não fica restrito ao seu território, ele cruza oceanos, altera o clima, impacta safras agrícolas, destrói ecossistemas e compromete a saúde de milhões de pessoas em outras partes do mundo. No entanto, ainda insistimos em operar sob a lógica da competição, como se fosse possível vencer sozinhos em um jogo no qual todos, inevitavelmente, estão conectados.
Uma pesquisa recente publicada pela revista Global Health Research and Policy, analisou 104 estudos sobre estratégias de controle da poluição do ar, e mostrou que em cerca de 70% dos casos os benefícios econômicos superam os custos, principalmente pela redução de mortalidade, doenças respiratórias e perdas de produtividade. Ao mesmo tempo, dados do The Conference Board, um instituto de pesquisa independente, revelam que, embora o uso do termo ESG (Environmental, Social and Governance) nos títulos de relatórios corporativos esteja em queda, passando de 40% em 2023 para apenas 6% em 2025 entre empresas do S&P 100, a maioria das companhias continua a adotar metas concretas de sustentabilidade, com 87% das empresas do S&P 500 divulgando compromissos climáticos no último ano. Esses dados reforçam que a sustentabilidade segue economicamente vantajosa e estrategicamente central, mesmo diante de mudanças no posicionamento das corporações.
ESG como caminho coletivo
O ESG representa uma forma de pensar que traduz esse espírito de cooperação ao incorporar impactos ambientais, sociais e de governança nas decisões de negócios e políticas públicas. No campo ambiental, isso significa reduzir emissões, preservar ecossistemas, usar a água de forma responsável, controlar resíduos e acelerar a transição para fontes limpas de energia. Mas para que isso funcione globalmente, é indispensável padronização, acompanhamento e métricas confiáveis. No aspecto social, trata-se de garantir justiça ambiental, respeito aos direitos humanos e trabalho decente, lembrando que as consequências da degradação ambiental tendem a recair com mais intensidade sobre os mais vulneráveis, como países pobres ou populações marginalizadas. Já a governança envolve políticas, leis, regulamentos, fiscalização e transparência, pois apenas com instituições fortes é possível alinhar incentivos e transformar compromissos em resultados concretos.
O retrocesso da EPA
Nesse contexto, a recente proposta da Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (EPA), de encerrar a exigência de que usinas de carvão, refinarias de petróleo e outras indústrias pesadas reportem regularmente suas emissões de poluentes, representa um ponto de atenção crítica. Esses relatórios sempre foram fundamentais para compreender a origem das emissões, formular políticas de mitigação e monitorar avanços. A decisão pode estar vinculada a pressões econômicas e políticas, com o argumento de que relatórios representam custos excessivos para empresas ou burocracia desnecessária.
No entanto, seus impactos potenciais são graves: reduzem a transparência, comprometem o cumprimento de metas climáticas, prejudicam a saúde pública, fragilizam o alinhamento com investidores que exigem padrões ESG sólidos e, sobretudo, criam um efeito cascata global. Afinal, se uma potência como os EUA recua, outros países podem se sentir autorizados a fazer o mesmo.
O dilema da competição
É preciso compreender, contudo, os argumentos que alimentam esse tipo de retrocesso. Nos bastidores, a justificativa mais frequente é o custo. Empresas alegam que relatórios ambientais exigem investimentos em tecnologia de monitoramento, sistemas de compliance, auditorias independentes e equipes dedicadas, gastos que, segundo elas, reduzem competitividade frente a concorrentes internacionais que não têm as mesmas exigências. Outro argumento é a burocracia. Para setores pesados, como o de energia e siderurgia, o preenchimento de relatórios é visto como uma sobrecarga administrativa, capaz de atrasar projetos, paralisar investimentos e gerar insegurança jurídica. Essa visão se fortalece especialmente em momentos de desaceleração econômica ou de disputa comercial global, quando cada dólar economizado é tratado como vital.
Há ainda a dimensão política. Parte do discurso interno americano associa ESG a um excesso de interferência do Estado na economia ou a uma pauta “ideológica” que limita a liberdade de empresas. Sob esse prisma, reduzir relatórios seria um gesto de desregulação, em nome da liberdade de mercado. O problema é que ao adotar essa narrativa, ignora-se que os custos de curto prazo evitados hoje se transformarão em custos muito maiores no futuro, como desastres ambientais, crises de saúde pública, perda de produtividade, desestruturação de cadeias de suprimentos e aumento de riscos sistêmicos para investidores e governos.
Esse movimento representa exatamente o risco do chamado dilema do prisioneiro global. Quando um país deixa de assumir suas responsabilidades ambientais, pode até obter ganhos de curto prazo em competitividade e custo de produção, mas transfere os custos sociais, ambientais e econômicos para toda a comunidade internacional. Poluição atmosférica, aquecimento global, elevação do nível do mar, enchentes e secas não conhecem fronteiras. É por isso que a cooperação é a única via possível. A atmosfera, os oceanos, os grandes reservatórios de biodiversidade e os polos são bens comuns da humanidade, e não podem ser degradados sem que todos arquem com as consequências.
Esse comportamento revela também uma distinção importante entre intencionalidade positiva e intencionalidade negativa no campo ambiental. A intencionalidade positiva ocorre quando empresas e governos, mesmo reconhecendo custos adicionais, adotam práticas ESG para contribuir com o bem comum, reduzir riscos coletivos e preservar o futuro. Já a intencionalidade negativa se manifesta quando a busca por ganhos imediatos leva à omissão deliberada, como esconder dados, evitar monitoramentos e enfraquecer regulações em nome da competitividade. O caso da EPA é emblemático, sob a justificativa de eficiência e redução de custos, se esconde a intencionalidade negativa de liberar setores altamente poluentes do escrutínio público.
Cooperação como sobrevivência
Os EUA têm um peso histórico e moral inescapável nessa equação. São um dos maiores emissores de gases de efeito estufa da história e ainda hoje figuram entre os líderes em emissões totais anuais. Como potência econômica e tecnológica, suas decisões regulatórias moldam cadeias produtivas globais, investimentos e a confiança em acordos multilaterais. Se enfraquecem seus próprios mecanismos de monitoramento, não apenas prejudicam sua própria política ambiental, como também abalam a confiança internacional em sua capacidade de liderar pelo exemplo. Outros países podem reduzir seus esforços, criando um círculo vicioso de desconfiança e retrocessos.
Estamos em uma encruzilhada histórica. Se o mundo seguir no modo competição, veremos o agravamento das mudanças climáticas, o aumento de eventos extremos, crises de saúde pública, colapso de ecossistemas e instabilidade política. Mas se conseguirmos reforçar a cooperação global, podemos manter o aumento da temperatura em níveis “controláveis”, preservar a biodiversidade, melhorar a qualidade de vida, criar novas oportunidades de emprego e transformar o risco climático em um motor de inovação. A escolha entre cooperação e competição é, portanto, uma escolha entre futuro e colapso.
Por outro lado, os benefícios de manter e reforçar padrões de ESG são claros. Ao exigir relatórios ambientais robustos, é possível orientar políticas públicas, atrair investidores alinhados a critérios sustentáveis, gerar inovação tecnológica, promover empregos verdes e fortalecer a saúde pública. O alinhamento entre regulação, mercado e sociedade civil permite criar mecanismos em que todos ganham, com governos mais eficazes, empresas mais resilientes e cidadãos mais protegidos. Negar esse caminho em nome da competição é escolher deliberadamente o atraso e o risco.
Estamos em um condomínio chamado Terra. Se um vizinho decide jogar lixo pela janela, não é apenas ele que sofre, todo o prédio sente os efeitos. A decisão da EPA é mais do que uma medida administrativa americana, é um símbolo da luta entre a visão de curto prazo e a responsabilidade coletiva. O planeta não pode esperar. A cooperação não é mais um ideal, é a única forma de sobrevivência.
*Patricia Punder é advogada e CEO da Punder Advogados